Liberdade religiosa no trabalho: o que pode e o que não pode à luz da lei?

 

Empresas implantam cultos religiosos e ‘orientam’ funcionários a participar; procuradora do Trabalho vê coação e diz que relação pode ser vista como assédio moral

 

“Às segundas ou sextas, o diretor financeiro, que também é pastor, chamava todo mundo, fazia a empresa parar o trabalho e ficávamos por cerca de 40 minutos em uma roda ouvindo música gospel, enquanto ele fazia um discurso bíblico misturado com coaching empresarial. No fim, fazíamos uma oração”, F.D., desenvolvedor de software.

 

“Um dos sócios instituiu um culto semanal online às terças pela manhã. Quando anunciaram essa prática, o gestor falou que não precisava participar, mas que queria deixar bem claro que ele estaria lá. Tem um tom de coação, de ameaça, você se sente observado”, A.R., técnico em segurança do trabalho.

“Quando eu cheguei na empresa, eu ia aos cultos mesmo não querendo ir. Me dava a sensação de que, se eu não fosse, eu não faria parte da cultura da empresa. Nas vezes em que eu não fui, ficou um clima ruim e houve uma cobrança de ‘por que você não foi? Na próxima você vai, né?’, S.V., redator.

 

A reportagem ouviu relatos como os descritos acima de funcionários ou ex-funcionários de sete empresas brasileiras que implantaram no dia a dia de trabalho a prática de cultos religiosos. Com receio de retaliação por parte dos empregadores, as fontes concordaram em conversar com a reportagem, desde que seus nomes fossem mantidos em anonimato. As empresas são de cinco Estados: Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Paraná e São Paulo.

 

O burburinho em torno do assunto começou há duas semanas, quando o Plantão Linkedinho — perfil sobre o mundo corporativo feito no LinkedIn pela redatora Tatiany Lukrafka — contou o relato de uma fonte anônima que trabalha em uma empresa que possui a prática de culto religioso. Entre quem se surprendeu e quem também já havia passado por uma situação como essa, ficou a pergunta: até onde vai o limite entre trabalho e religião?

 

O Brasil é um País dividido entre muitas religiões. De acordo com uma pesquisa Datafolha de 2022, 49% da população se diz católica, 26% evangélica e 14% sem religião. Os 11% restantes se dividem entre o espiritismo, a umbanda e o candomblé.

 

Diante disso, a própria Constituição garante a liberdade religiosa como um direito. Segundo o documento, é inviolável a liberdade de crença, ou seja, todas as crenças religiosas precisam ser respeitadas. Com base nisso, as empresas podem criar cultos religiosos dentro da organização? Não é bem por aí.

 

“Se por um lado, aquele que crê tem a liberdade de praticar o culto ou a crença, por outro aquele que não crê também tem a liberdade de não participar. Quando você transforma o ambiente de trabalho em um ambiente de crença religiosa, você pode constranger o trabalhador que não quer participar, o que viola a liberdade de crença e até a dignidade da pessoa”, explica Mayara Morozini, advogada especialista em Direito do Trabalho.

Pode-se argumentar então que, se a empresa não obrigar o funcionário a participar do culto, ela não estaria infringindo o direito de liberdade religiosa, mas a própria essência do contrato de trabalho mostra que também não é por aí.

 

Coação e assédio moral

A procuradora regional do Trabalho Adriane Reis de Araújo explica que a relação entre contratante e contratado é assimétrica, ou seja, as forças entre chefe e funcionário são desiguais e isso pode fazer com que quem tem menos poder, no caso os colaboradores, se sintam coagidos a fazer o que é dito pela chefia.

 

“Quando o empregador estabelece um culto no horário de trabalho, ele gera um constrangimento para todo mundo participar e isso atinge o direito de liberdade de crença. Se a empresa decide adotar esse tipo de situação, é certo que ela pode ser interpretada como assédio moral no mercado de trabalho”, destaca.

 

Nos sete relatos ouvidos pela reportagem, nenhuma das empresas disse explicitamente que a participação nos cultos religiosos era obrigatória. No entanto, todos os entrevistados se sentiram coagidos a participar, seja por um chefe fazendo pressão diretamente ou até mesmo por funcionários mais antigos que diziam aos novatos que o melhor era participar para não enfrentar represálias, como não receber bônus ou não conseguir se desenvolver dentro da organização.

 

“No começo, eu participava, por medo de perder o emprego. Mas depois de um tempo eu tive uma crise de depressão e percebi que viver aquilo começou a me fazer mal. E eu não podia falar abertamente sobre isso na empresa. Quando eu tomei a decisão de não mais participar, eu avisei a minha esposa porque tomar essa decisão era um risco”, conta o engenheiro C.L., de 35 anos.

 

Um certo dia, ele foi confrontado pela chefia da empresa sobre os motivos para não participar mais das práticas espiritualizadas — como eram chamadas. Após alguns meses, foi demitido. Embora a empresa nunca tenha dito que a razão pela demissão tenha sido a negativa de participar das práticas, C.L. acredita que seja esse o motivo.

 

“Se o empregador tem uma crença e quer difundi-la, ele pode vir a conversar com os trabalhadores fora do horário de trabalho, mas toda vez que a prática religiosa estiver vinculada ao contrato de trabalho, ele corre o risco de cometer assédio moral”, destaca a procuradora.

 

Na última semana, a reportagem foi avisada que uma das organizações em questão, uma empresa de tecnologia em Campinas, avisou aos funcionários que o culto não irá mais ocorrer no horário de trabalho.

 

Perguntar a religião durante a contratação

Outra forma de ferir a liberdade religiosa no mercado de trabalho é quando a empresa decide contratar apenas pessoas que possuem a mesma religião dos donos. Com essa intenção, há organizações que perguntam, durante o processo seletivo, qual é a religião dos candidatos às vagas.

 

“Quando eu estava no processo seletivo da empresa que trabalhei por seis meses, na ficha de candidatura tinha uma pergunta sobre a minha religião. Os próprios funcionários que já trabalhavam nesse lugar me falaram que eu deveria colocar ‘evangélico’ ou ‘cristão’, mesmo sendo católico. Eu achei estranha a pergunta, mas eu precisava trabalhar”, conta D.A., analista de sistemas.

 

A prática, no entanto, é proibida, segundo a advogada especialista em Direito do Trabalho Mayara Morozini. “Isso seria um modo de discriminação. Em que a religião influencia no seu trabalho? Há uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que protege o trabalhador em relação a sua intimidade, então ele não tem que expor isso ao empregador.”

 

Quer debater assuntos de Carreira e Empreendedorismo? Entre para o nosso grupo no Telegram pelo link ou digite @gruposuacarreira na barra de pesquisa do aplicativo. Se quiser apenas receber notícias, participe da nossa lista de distribuição por esse link ou digite @canalsuacarreira na barra de pesquisa

As exceções, segundo o MPT, são as organizações de tendência, aquelas em que a religião e a ideologia se misturam com a relação contratual de trabalho, como por exemplo empresas de ensino religioso, sindicatos e partidos políticos. Nenhuma das sete empresas dos relatos ouvidos pela reportagem se enquadra nessa categoria.

 

“Apenas esse tipo de empresa pode colocar como valor da organização uma indicação religiosa. Nos outros casos, essa é uma conduta discriminatória vedada pela Constituição. Se uma empresa tem esse requisito na contratação, ela está comentando algo ilícito. Se, no curso do contrato de trabalho, o empregador demite o empregado porque ele não professa a fé que ele acha adequada, também é uma conduta ilegal, passível de multa”, explica a procuradora.

 

O que o trabalhador pode fazer

O primeiro passo é reunir todas as provas do desvio de conduta, segundo as especialistas, como mensagens, fotos, vídeos, qualquer documento que demonstre a prática dos cultos dentro da organização no horário de trabalho.

 

“É muito bom que o empregado consiga reunir provas, mas, caso não as tenha, o MPT pode prosseguir com a investigação com provas testemunhais”, diz a procuradora regional do Trabalho Adriane Reis de Araújo.

 

As denúncias podem ser feitas para o sindicato da categoria ou para o próprio Ministério Público do Trabalho pelo site. Todo o procedimento pode ser feito de forma anônima.

 

Se comprovadas as irregularidades, a empresa está sujeita ao pagamento de multa e indenização. No caso de uma demissão, a organização também pode ter que reintegrar o trabalhador demitido com pagamento da remuneração corrigida.

 

Fonte e Foto: Estadão

Comentários

Postagens mais visitadas