Por um novo sindicato
Não podemos perder a experiência acumulada de tantos companheiros e companheiras, não podemos abrir mão da solidez da luta sindical que garantiu tantas conquistas para a classe, mas precisamos também nos deixar desafiar por quem está chegando.
Graça Costa*
O mundo do trabalho sofreu enormes transformações na última década. O avanço da tecnologia e do capitalismo de plataforma cresceram aceleradamente, reduziram o custo e garantiram o aumento dos ganhos de produtividade. Nesse cenário, a precarização avançou na proporção do aumento da desigualdade social e da concentração da riqueza.
As péssimas condições da informalidade, os contratos atípicos, a uberização, o ataque ao sindicato, o desmonte das políticas de proteção social e da legislação trabalhista deixaram os trabalhadores e trabalhadoras entregues à própria sorte. Com a relação de trabalho difusa, ele/a não sabe quem é o responsável pela remuneração, bem como os direitos dele/a. Com quem estabelecer processo de negociação?
A fragmentação, com a alta rotatividade e a pulverização, cria nova realidade, na qual os trabalhadores não dividem mais o mesmo local de trabalho, o que impede a criação de laços de solidariedade por meio do compartilhamento dos problemas e das expectativas comuns. As culturas do individualismo e do empreendedorismo completam o quadro, dificultando também a construção da organização coletiva.
O serviço público sofre desmonte acelerado com a redução das políticas públicas e a transferência das responsabilidades do Estado para o setor privado. A terceirização sem limites, o fim dos concursos e os cortes no orçamento fragilizam os servidores. O encolhimento do serviço público, somado à desindustrialização, impacta na conformação e na organização da classe trabalhadora. Trata-se de empregos com estabilidade, direitos e benefícios garantidos e, por essas razões, com maiores índices de sindicalização. A substituição desses postos por outros precários têm impacto nos índices de representatividade.
Proposta contemporânea
Nesse mundo, a proposta do sindicato, longe de se tornar obsoleta, é extremamente atual. A luta de classes não é hoje menos agressiva do que quando essa surgiu. Contudo, com a nova configuração do trabalho, esses vêm se enfraquecendo, perdendo espaço de negociação. É urgente recuperar o poder de organização, força social e política do sindicato.
Porém, a força política do sindicato quem proporciona são os trabalhadores organizados. Embora esse seja um princípio fundamental, muitas vezes é considerado de forma invertida na definição das estratégias. Não será o sindicato fortalecido que trará o trabalhador para a luta, é o trabalhador dentro do sindicato que dá a esse força política para tanto. Daí, o primeiro desafio não é representar, é organizar. A representação será consequência natural.
Para responder a esse desafio, é preciso ter clareza de que nem o mundo do trabalho voltará a ser o mesmo, nem as formas de organização da classe. A configuração atual da classe exige que o sindicato se reinvente para manter-se fiel ao seu princípio constituinte e seu papel. Deve ser referência para o trabalhador formal, sua base tradicional, mas que acolha também aqueles e aquelas que vivem à margem da proteção sindical. Precisamos de modelos em que o velho e o novo convivam.
Projeto para renovação passa por identificar e assimilar as mudanças que estão ocorrendo e a partir daí definir novas estratégias de ação, mantidos os princípios. O sindicato tem que acolher as reivindicações dos formais, que também estão expostos à precarização, estar presente no local de trabalho, liderando os processos de negociação coletiva e, ao mesmo tempo, abrir os espaços para os que estão fora da cobertura/proteção sindical.
Espaços interessantes para juventude
É necessário construir novos espaços de diálogo e novo conteúdo, novas propostas. Para boa parte da juventude trabalhadora, falar em contrato formal, férias e 13º não faz sentido. São jovens que não conhecem e nem têm expectativa de conseguir emprego nessas condições. Precisamos conhecer as necessidades e demandas concretas desses. Usando o exemplo dos entregadores, que ganharam maior expressão na pandemia, é urgente garantir estrutura de apoio, onde eles possam fazer pausa, e que será também ponto de encontro; é preciso lutar por seguro de vida, auxílio para manutenção das motos e bikes, por boa internet e pelo direito de acesso aos dados que produzem. Para além da igualdade de direitos com os trabalhadores e as trabalhadoras que estão na formalidade, a pauta deve incluir demandas que atendam às necessidades específicas desses.
É necessário utilizar novos instrumentos de comunicação e investir nas novas tecnologias. Não chegaremos aos trabalhadores apenas com boletins impressos, por meio de artigos no site. Sem abandonar nossas formas tradicionais de contato com a base, precisamos ir além com postura proativa, alcançá-los por meio das redes sociais, de modo direto e rápido. Ninguém mais para, a fim de ver vídeo de 20 minutos, nem a velha guarda. O volume de informações é absurdo, o conteúdo tem que fazer sentido para quem recebe à primeira vista, dialogar diretamente com os seus interesses e necessidades, senão será descartado de imediato.
Ao mesmo tempo, somos desafiados a preservar os velhos canais de comunicação. O contato direto, a conversa olho no olho não pode ser abandonada. Ainda precisamos da formação política e sindical presencial. Não podemos abandonar o velho e nem tampouco recusar em relação ao novo! Devemos manter o equilíbrio entre a mensagem que seja ágil e direta, que chegue rápido à base e, ao mesmo tempo, não normalizar a comunicação que aumenta os riscos de impessoalidade e superficialidade, e não forma consciência coletiva e de classe.
Estrutura flexiva
Precisamos de estrutura que seja orgânica, mas que seja também horizontalizada e desburocratizada. Se o trabalhador tiver que preencher uma longa ficha de papel e entregar pessoalmente no sindicato, ele não se filiará. Se a solicitação tiver que ser submetida à cadeia hierarquizada de autorizações, ele não se sentirá acolhido. Temos que fortalecer e inovar no exercício da democracia. Os fóruns de participação como as assembleias e congresso são fundamentais, mas devem ser dinâmicos, devem utilizar as ferramentas virtuais. A pandemia já mostrou que isso é possível.
A pauta não pode tratar majoritariamente de interesses internos: estrutura, eleições, disputas políticas, financiamento, orçamento. Também essa, porque é preciso transparência para merecer a confiança dos trabalhadores e trabalhadoras. Porém, a construção da pauta deve ser fruto de consultas constantes. Devemos garantir que o processo seja coletivo, que eles participem e se sintam contemplados.
O sindicato deve estar no espaço cotidiano, ter presença na comunidade, nas lutas do dia a dia. Os problemas de transporte público, saneamento, o combate à violência contra as mulheres, o genocídio da juventude negra nas periferias, a homofobia, tudo isso têm que contar com o acompanhamento e a presença dos dirigentes. A sede sindical deve ser espaço aberto para a comunidade, onde as demandas por trabalho digno, por direitos trabalhistas, se somem às pautas dos movimentos populares e sociais. A ação sindical não pode mais se restringir à pauta da negociação coletiva, deve se ampliar, reivindicar políticas públicas, que também garantam melhores condições de vida para a classe trabalhadora.
É necessário valorizar a cultura do território para que essa seja forma de resistência ao conteúdo massificador e discriminatório do sistema. Os diversos modos de expressão cultural que nascem nas periferias das cidades e do País são também espaços de organização popular e solidariedade. Hoje, o rap fala mais da luta por respeito à dignidade dos trabalhadores e das trabalhadoras do que o jornal do sindicato.
Esse deve também apoiar as organizações solidárias, os arranjos locais, os pequenos empreendimentos familiares, o pequeno comércio local, as redes que vão se construindo para gerar trabalho e renda na comunidade e garantir sobrevivência. Incentivar e dar apoio às experiências de economia solidária, não apenas como alternativa, mas também como experiências de organização coletiva.
Adaptação
É urgente estabelecer nova forma de nos relacionar com o espaço e o tempo, em sintonia com as experiências e a dinâmica atual do dia a dia da classe, senão nos descolamos do mundo real. A maioria dos trabalhadores não sabe mais o que é jornada de 8 horas diárias e 44 horas semanais, não sabe mais o que é a hora de almoço.
O trabalho é de domingo a domingo, 12 horas por dia, sem controle de jornada. Não se sabe mais o que é local fixo, mesa, instrumentos personalizados, ter companheiros e companheiras com quem se convive diariamente. O trabalho é na rua, dentro de casa, cada dia num lugar diferente, sem previsibilidade. Se a vida do sindicato se limitar ao espaço da sede sindical, de segunda a sexta, das 9h às 18h, a distância com a base só vai aumentar. A estrutura deve funcionar, mas a presença na base, a rotina dos dirigentes, a vida sindical não pode se pautar por essa.
Por fim, é preciso renovar. Essas mudanças não acontecerão se esses trabalhadores não estiverem lá dentro do sindicato, participando ativamente. Deve haver identidade entre os representantes e os representados. Quem vive a realidade do novo mundo do trabalho e conhece o rosto da precarização precisa estar dentro do sindicato, na construção da pauta e das estratégias.
Também aqui, o novo e o velho precisam conviver. Não podemos perder a experiência acumulada de tantos companheiros e companheiras, não podemos abrir mão da solidez da luta sindical que garantiu tantas conquistas para a classe, mas precisamos também nos deixar desafiar por quem está chegando, reconhecer humildemente que precisamos aprender com o diferente para fazer sindicalismo que acolha e represente toda a classe. Uma realidade que não muda: sempre teremos que lutar para garantir a dignidade e o direito dos trabalhadores e trabalhadoras!
(*) Vice-presidente do Diap e secretária nacional da CUT
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