Entre jabutis e urubus: a polêmica do trabalho em domingos e feriados
A
tramitação da conversão da MP 881, que propõe medidas de
desburocratização e simplificação de processos para empresas e
empreendedores, gerou debate intenso sobre diversos temas, especialmente
os trabalhistas.
Inserido
no contexto das propostas de simplificações procedimentais e de
desburocratização das relações jurídicas, o assunto dos domingos e
feriados foi apelidado de “jabuti”, especialmente pelos que se opunham
ao seu conteúdo. Na pressa em aprovar o texto final e aproveitando
brechas abertas pela tensão das negociações e pressões a estas
inerentes, o Senado Federal acolheu o requerimento para “considerar não
escrito” um trecho da MP que propunha alterações aos artigos 67, 68 e 70
da CLT1, negligenciando o cuidado sistemático do texto final aprovado.
Sim,
as alterações tidas por “não escritas” compunham um sistema, quer
dentro da MP 881, quer no contexto das normas infralegais (por exemplo a
Portaria nº 604/2019 – SEPREVT/ME e outras, atualmente em revisão e
consolidação).
Toda
a movimentação da última semana deu lugar a discursos imprecisos e
algum engodo ao público de trabalhadores e empreendedores. Mas, do ponto
de vista prático, pouca coisa mudou em decorrência de tal manobra.
Talvez alguns não tenham percebido, mas o texto final da MP 881 (PLV 17/2019) seguiu revogando:
(i) o artigo 319 da CLT, (ii) os dispositivos 6º, 6º-A e 6º-B da Lei nº
10.101/2000, (iii) os artigos 8º, 9º e 10 da Lei nº 605/49 e (iv) a Lei
nº4.178/62, que também se referem ao trabalho em domingos, feriados ou
dias anteriormente vedados.
A Lei da PLR (Lei nº 10.101/2000),
embora tenha expressamente autorizado o trabalho no comércio aos
domingos, recomendou a observância do interesse local e permitiu que
cada município legislasse sobre o tema (art. 30, I da CF). No particular
dos feriados, exigiu sua autorização por “convenção coletiva de
trabalho”, que deveria ser harmônica à legislação municipal, se
existente.
Já a Lei do Repouso Semanal Remunerado (Lei nº 605/49),
igualmente admitia o trabalho em domingos e feriados “em virtude das
exigências técnicas das empresas”, determinando, entretanto, o seu
pagamento em dobro, salvo folga compensatória. A exceção foi
inicialmente vinculada a setores estratégicos como saúde e transporte,
mas não se pode descurar a evolução da dinâmica social que, atualmente,
especialmente no comércio, confia no trabalho em domingos e feriados, o
que faz disso uma exigência à e da área.
O revogado artigo 319 da CLT
vedava aos professores a regência de aulas e a aplicação de exames em
domingos. Por oportuno, é de se pontuar que o funcionamento de alguns
estabelecimentos de ensino em sábados e domingos viabiliza o acesso ao
direito fundamental à educação a diversos cidadãos, pois seus cursos
(normalmente técnicos ou de preparação para concursos) costumam ser
frequentados por aqueles que não têm disponibilidade de tempo nos outros
dias da semana.
E, por fim, a Lei nº 4.178/62
proibia expediente externo ou interno nos estabelecimentos de crédito
(bancos) aos sábados, o que já era excepcionado em diversas
circunstâncias por alguns estabelecimentos. A permissão alinha o setor
às práticas internacionais.
Em
reflexão, se aos comerciários já não se exige que lei municipal ou CCT
discipline o trabalho aos domingos e feriados e se aos professores já
não se veda o labor em domingos, tem-se que tais normas específicas, que
poderiam ser consideradas mais protetivas, já não existem mais. Na
lacuna, se cai no plano das generalidades e, por consequência, nos
artigos da CLT, que foram integralmente mantidos pelo Senado Federal e cuja redação remonta ao século passado.
À análise:
Art. 67 – Será assegurado a todo empregado um descanso semanal de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas, o qual, salvo motivo de conveniência pública ou necessidade imperiosa do serviço, deverá coincidir com o domingo, no todo ou em parte.
Parágrafo único – Nos serviços que exijam trabalho aos domingos, com exceção quanto aos elencos teatrais, será estabelecida escala de revezamento, mensalmente organizada e constando de quadro sujeito à fiscalização.
É
inequívoco que o funcionamento do comércio, aos domingos e feriados é,
atualmente (e no mínimo), uma “conveniência pública” e, a depender do
nicho explorado pelo estabelecimento de ensino privado, idem. Sequer as
regras protetivas de gênero subsistem à leitura supra: o art. 385 da CLT2, por exemplo, também se abre às “conveniências públicas”.
Disto
se pode concluir que está autorizado o trabalho em domingos a
comerciários e professores, desde que observada a escala mensal de
revezamento3.
Art. 68 – O trabalho em domingo, seja total ou parcial, na forma do art. 67, será sempre subordinado à permissão prévia da autoridade competente em matéria de trabalho.
Parágrafo único – A permissão será concedida a título permanente nas atividades que, por sua natureza ou pela conveniência pública,
devem ser exercidas aos domingos, cabendo ao Ministro do Trabalho,
Industria e Comercio, expedir instruções em que sejam especificadas tais
atividades. Nos demais casos, ela será dada sob forma transitória, com
discriminação do período autorizado, o qual, de cada vez, não excederá
de 60 (sessenta) dias.
O
artigo submete o trabalho em domingos a uma permissão prévia da
autoridade responsável pela regulação da matéria trabalhista no Brasil
(atualmente a Secretaria Especial da Previdência e Trabalho do
Ministério da Economia). Esta permissão poderá ser permanente,
inclusive, se a atividade for considerada de “conveniência pública”.
Art. 70 – Salvo o disposto nos artigos 68 e 69, é vedado o trabalho em dias feriados nacionais e feriados religiosos, nos termos da legislação própria.
O artigo vedava o trabalho em dias feriados e determinava seu pagamento dobrado em caso de não concessão4,
ressalvando a existência de autorização prévia da autoridade
trabalhista e reportando-se à legislação própria (no caso a Lei nº
605/49), que, agora, também está revogada.
Por
fim, aos estabelecimentos bancários foi dada autorização para
funcionamento aos sábados, o que levará à necessária revisão do artigo
224 da CLT 5 e cancelamento ou revisão da Súmula 113 do TST6.
A dificuldade decorrente da antinomia apontada poderá ser facilmente
ultrapassada por negociação coletiva que, inclusive, tem prevalência
sobre a legislação desde a Reforma Trabalhista (art. 611-A da CLT).
Moral
da história: na Fábula da MP 881, a tentativa de matar o jabuti
transformou-o em um imenso urubu. Se é reprovável a prática de embutir
em Projeto de Lei ou Medida Provisória matérias alheias ao seu foco,
muito mais o é a permissão de resultado inseguro como decorrência de um
processo legislativo. O Direito só cumpre sua função de pacificação
social quando rege fatos quotidianos de forma objetiva e simples.
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1 Contrariamente
ao que se viu em alguns veículos, o direito ao descanso semanal
remunerado não seria retirado das garantias básicas dos trabalhadores,
assim como o seu pagamento em dobro, a imposição da folga compensatória
ou a previsão de sua coincidência com o domingo ao menos uma vez ao mês.
Perceba-se (PLV 17/2019): “ Art. 67 – Será assegurado a todo empregado
um repouso semanal remunerado de 24 horas consecutivas,
preferencialmente aos domingos. Art. 68 – Fica autorizado o trabalho aos
domingos e feriados. Parágrafo único: o repouso semanal remunerado
deverá coincidir com o domingo pelo menos uma vez no período máximo de 4
semanas. Art. 70 – O trabalho aos domingos e nos feriados será
remunerado em dobro, salvo se o empregador determinar outro dia de folga
compensatória.”
2 Art. 385 – O descanso semanal será de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas e coincidirá no todo ou em parte com o domingo, salvo motivo de conveniência pública
ou necessidade imperiosa de serviço, a juízo da autoridade competente,
na forma das disposições gerais, caso em que recairá em outro dia.
Parágrafo único – Observar-se-ão, igualmente, os preceitos da legislação geral sobre a proibição de trabalho nos feriados civis e religiosos.
3 Embora
sob forte controvérsia, faz-se ressalva ao trabalho das mulheres, para
quem a escala deverá ser quinzenal, ao teor do art. 386 da CLT (Art.
386 – Havendo trabalho aos domingos, será organizada uma escala de
revezamento quinzenal, que favoreça o repouso dominical.)
4 É
cautelar dizer que a obrigação de pagamento dobrado dos feriados segue
obrigatória em face do disposto no no texto do Decreto nº. 27048/49, que
regulamenta a Lei nº605/49 que atualmente se encontra em processo de
revisão e consolidação. Neste sentido, ver: http://participa.br/profile/secretaria-de-trabalho
5 Que ainda excepciona o sábado da semana laboral dos bancários: “A
duração normal do trabalho dos empregados em bancos, casas bancárias e
Caixa Econômica Federal será de 6 (seis) horas continuas nos dias úteis,
com exceção dos sábados, perfazendo um total de 30 (trinta) horas de trabalho por semana”
6 Coerente com o contexto até então vigente: Súmula 113, TST – BANCÁRIO. SÁBADO. DIA ÚTIL (mantida) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 – O sábado do bancário é dia útil não trabalhado, não dia de repouso remunerado. Não cabe a repercussão do pagamento de horas extras habituais em sua remuneração.
Denise Fincato – Advogada e Consultora Trabalhista.
Sócia de Souto Correa Advogados. Professora Titular de Direito do
Trabalho na PUCRS. Pesquisadora. Pós-Doutora em Direito do Trabalho
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