Aspectos processuais da Reforma Trabalhista.
A Lei nº 13.467/2017, que alterou a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), foi publicada no Diário Oficial da União em 14 de
julho de 2017, estabeleceu que os seus dispositivos entrariam em vigor após
decorridos cento e vinte dias de sua publicação oficial.
Todavia, mesmo antes do início da sua vigência,
surgem dúvidas e discussões acerca da aplicabilidade do novo regramento sobre
relações de trabalho pré- existentes e processos judiciais em curso ou
ajuizados antes do início da sua vigência.
As inovações de direito material trazidas a lume
pela reforma implicam em necessariamente na mudança do paradigma do Direito do
Trabalho em nosso país.
Não obstante inúmeras discussões e fundamentadas
críticas quanto às referidas modificações, após a sua aprovação pelo Congresso
Nacional e sua sanção presidencial, surge o problema quanto à análise da sua
aplicabilidade aos contratos de trabalho em curso, diante dos princípios da
condição mais benéfica e da vedação à alteração contratual lesiva, prevista no
art. 468, da CLT.
Por outro lado, a referida reforma também trouxe
diversas inovações processuais, sendo que muitas delas são consideradas como
barreiras ao direito constitucional de ação e limitadoras da efetivação dos
direitos sociais previstos constitucionalmente, criando entraves de acesso ao
Poder Judiciário.
Todavia, abstraindo-se tais discussões meritórias
sobre a reforma, o escopo do presente artigo é analisar o aspecto intertemporal
de aplicabilidade das modificações aos processos já em curso ou ajuizados antes
da vigência da nova lei, tratando especificamente da questão dos chamados
direitos processuais substantivos ou processuais materiais, seguindo a
denominação utilizada por DINAMARCO (1)
A questão intertemporal no Direito
Processual
Em matéria de direito intertemporal, são
princípios gerais do direito a irretroatividade das leis e a aplicabilidade
imediata da lei nova.
Em relação à aplicação da lei processual no
tempo, surgiram três teses: a) da unicidade contratual; b) das fases
processuais; e, c) do isolamento dos autos processuais.
Pela teoria da unidade processual, o processo é
considerado com um conjunto de atos inseparáveis, unidos por um mesmo objetivo
e interdependentes entre si. Iniciado o processo sob a vigência de uma
determinada lei, não é possível que uma nova norma surja e modifique o
encadeamento e a natureza dos atos a serem praticados. Segundo esta teoria, o
processo não pode ser regulado por leis diversas sobre o mesmo procedimento.
Por sua vez, pela teoria das fases processuais, o
processo pode ser dividido em fases autônomas, sendo que apenas cada fase
corresponderia a um conjunto de atos inseparáveis. Todavia, superada uma fase
do processo, seria possível a aplicação de uma nova legislação processual nas
fases posteriores. Com a divisão do processo em fases postulatória, probatória,
decisória e recursal, a lei nova poderia disciplinar as fases que ainda não
tivessem ocorrido, sendo que aquelas iniciadas, mas pendentes de solução,
continuariam sendo regulamentadas pela lei anterior.
Por fim, para a teoria de isolamento dos atos
processuais, a unicidade do processo não prejudica a autonomia dos atos
processuais, sendo que cada ato praticado deve ser visto isoladamente e, desde
que sejam respeitados os direitos e deveres decorrentes de cada um deles, a
nova lei poderá ser aplicada aos atos subsequentes, mesmo que a fase ainda não
tenha sido encerrada, mas não incidirá sobre os atos já praticados ou sobre os
seus efeitos supervenientes, mesmo que surgidos apenas na vigência da lei nova,
uma vez que os efeitos são indissociáveis do ato praticado ou que deixou de ser
praticado.
No Brasil, foi esta terceira teoria que foi
acolhida pelo diploma processual civil, conforme o art. 14, do CPC, “A
norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em
curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas
consolidadas sob a vigência da norma revogada”.
Embora não exista previsão expressa sobre a
questão intertemporal na Consolidação das Leis do Trabalho, o referido
regramento seria plenamente aplicável ao processo do trabalho for força do
disposto no art. 769, da CLT.
A questão intertemporal no Direito
Processual Subjetivo e a Teoria dos Jogos
Existem situações em que o direito processual e o
direito material não são estanques, sendo que alguns institutos processuais
acabam possuindo natureza híbrida, com reflexos em situações de direito
material. Conforme leciona DINAMARCO:
A autonomia do direito processual e sua
localização em plano distinto daquele ocupado pelo direito material não
significam que um e outro se encontrem confinados em compartimentos estanques.
Em primeiro lugar, porque o processo é uma das vias pelas quais o direito
material transita rumo à realização da justiça em casos concretos; ele é um
instrumento a serviço do direito material. Depois, porque existem
significativas faixas de estrangulamento, ou momentos de intersecção, entre o
plano substancial e o processual do ordenamento jurídico. (…)
A ação, a competência, a prova, a coisa julgada e
a responsabilidade patrimonial recebendo o direito processual parte de sua
disciplina (na sua técnica), mas também dizendo respeito a situações dos
sujeitos fora do processo (às vezes, até antes dele), compõem um setor a que a
doutrina já denominou direito processual material (Chiovenda). Elas são,
portanto, institutos bifrontes: só no processo a parecem de modo explícito em
casos concretos, mas são integrados por um intenso coeficiente de elementos
definidos pelo direito material e – o que é mais importante – de
algum modo dizem respeito à própria vida dos sujeitos e suas relações entre e
si e com os bens da vida. Constituem pontes de passagem entre o direito e o
processo, ou seja, entre o plano substancial e o processual do ordenamento
jurídico (Calamandrei) (2)
E, é justamente nesses casos de natureza híbrida
que a aplicação da regra do isolamento dos atos processuais pode não se
apresentar como a mais adequada, conforme adverte DINAMARCO:
O exagero que às vezes conduz a radicalizar a
aplicação imediata da lei processual civil é, ao menos em parte, reflexo de uma
outra postura igualmente exacerbada e consistente na obsessão em extrair todas
as conseqüências imagináveis do correto postulado da autonomia da relação
processual, da ação e do próprio direito processual como um todo. Não é lícito
pôr em dúvida essa autonomia em face do direito substancial e de seus institutos,
neste estágio avançadíssimo da cultura processualística – mas a moderna
ciência processual tem também a consciência da relativização do binômio direito
processo e da relação de instrumentalidade do processo em face do direito
substancial, responsáveis pela aproximação desses dois planos do ordenamento
jurídico e pela consciência das recíprocas influências trocadas entre eles. Os
institutos bifrontes, que se situam nas faixas de estrangulamento existentes
entre os dois planos do ordenamento jurídico e compõem o direito processual
material, comportam um tratamento diferenciado em relação à disciplina
intertemporal dos fenômenos de conotação puramente processual-formal (ou mesmo
procedimental) (3)
Estas seriam as hipóteses fixação de honorários
advocatícios de sucumbência (art. 791-A), dos novos requisitos para concessão
dos benefícios da justiça gratuita ao trabalhador (art. 790, §§3º e 4º) e da
responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais em caso de sucumbência
do trabalhador (art. 790-B), conforme previsão da Lei n. 13.467/2017.
Estes seriam institutos de direito processual,
mas que possuem nítida influência nas situações de direito material subjacentes
(institutos bifrontes).
O Superior Tribunal de Justiça, após o advento do
CPC/15, ao tratar da questão específica dos honorários advocatícios, reconheceu
a sua natureza híbrida, no julgamento REsp 1.465.535/SP, in verbis:
Não se pode olvidar que a lei processual tem
efeito imediato e geral, aplicando-se aos processos pendentes, respeitados o
direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Portanto, no que
tange às regras processuais, as novas normas do Código de Processo Civil
começam a ser aplicadas a partir da revogação do CPC/1973.
Todavia, impõe-se indagar se a real natureza
jurídica dos honorários advocatícios é processual, isto é, se as regras
previstas pelo novo CPC incidem imediatamente nos processos em andamento.
Frise-se que a Corte Especial do Superior
Tribunal de Justiça já se manifestou a respeito do tema, ao cristalizar a tese
de que o arbitramento dos honorários não configura questão meramente
processual, máxime ante os reflexos imediatos no direito substantivo da parte e
do advogado (4)
No julgamento do referido Recurso Especial,
afastando a regra da aplicação imediata prevista no art. 14, do CPC/15, com a
separação dos atos processuais, o Superior Tribunal de Justiça, com escólio nas
lições de Chiovenda, entendeu que a sentença seria o marco processual para
eleição da legislação aplicável, uma vez que o direito aos honorários somente
teria surgido com a sua prolação, sendo esta considerada o nascedouro da
obrigação, entendendo-a como constitutiva.
Saliente-se que o referido posicionamento teve
efeito de excluir a incidência da fixação dos honorários em fase recursal,
conforme previsto art. 85, §11º, do CPC/15, atendendo-se ao princípio da não
surpresa (art. 10, do CPC/15), conforme se extrai do seguinte trecho do
julgado:
Observa-se, portanto, que a sentença, como
ato processual que qualifica o nascedouro do direito à percepção dos honorários
advocatícios, deve ser considerada o marco temporal para a aplicação das regras
fixadas pelo CPC/15. A hermenêutica ora propugnada pretende cristalizar a
seguinte ideia: se o capítulo acessório da sentença, referente aos honorários
sucumbenciais, foi publicado em consonância com o CPC/73, serão aplicadas as
regras do vetusto diploma processual até a ocorrência do trânsito em julgado.
Por outro lado, nos casos de sentença proferida a partir do dia 18.3.2016, as
normas do novel CPC cingirão a situação concreta, inclusive no que tange à
fixação dos honorários recursais
Todavia, apesar do reconhecimento da natureza
híbrida dos honorários de sucumbência, o ideal seria que a questão pertinente
ao marco temporal para a seleção da legislação aplicável aos honorários fosse o
do ajuizamento da ação e não o da prolação da sentença.
Salienta WAMBIER, ao tratar do princípio do
devido processo legal:
Isso quer dizer que toda e qualquer
consequência processual que as partes possam sofrer, tanto na esfera da
liberdade pessoal quanto no âmbito de seu patrimônio, deve necessariamente
decorrer de decisão prolatada num processo que tenha tramitado de conformidade
com antecedente previsão legal. O devido processo legal significa o processo
cujo procedimento e cujas consequências tenham sido previstas na lei (5)
Neste ponto, importante a invocação da Teoria dos
Jogos em âmbito processual. Segundo esta teoria, ao se compreender o processo
como um jogo, em que também são esperados comportamentos de cooperação, disputa
e conflito, em que o resultado não depende somente do fator sorte, mas da
performance dos jogadores em face do Estado Juiz.
E, um dos aspectos mais importantes nesta
concepção, conforme leciona CALAMANDREI, é o fato de que apenas “decorar
as regras do xadrez não torna ninguém enxadrista” [6], porém, saber as
regras habilita o sujeito a jogar. As condutas dos atores processuais, assim
como nos jogos, são tomadas conforme as regras pré-estabelecidas para o jogo.
Portanto, é imprescindível que parte tenha ciência
das consequências jurídicas do ajuizamento do processo ou da defesa
apresentada, com a possibilidade de previsibilidade para avaliação das condutas
processuais a serem adotadas.
Não seria razoável que o trabalhador ou a
empresa, que tivessem ajuizado o processo ou apresentado defesa, enquanto
vigente a legislação que não estabelecia a obrigatoriedade de pagamento de
honorários advocatícios de sucumbência no âmbito da Justiça do Trabalho, fossem
surpreendidos com a condenação ao pagamento da referida parcela em benefício da
parte contrária, com a aplicação do novo art. 791-A, da CLT. Tal conduta
implicaria em afronta ao disposto no art. 10, CPC/15, com a configuração de
decisão surpresa e violação aos princípios da segurança jurídica e do devido
processo legal.
Neste sentido, é a lição apresentada por NÓBREGA,
ao tratar das inovações do Código de Processo Civil, mas plenamente aplicável
ao Processo do Trabalho, in verbis:
(…), a análise sobre os riscos e ônus
decorrentes do ajuizamento da ação, da oferta da contestação ou da interposição
do recurso é feita, precisamente, quando do ajuizamento da ação, da oferta da
contestação ou da interposição do recurso (!). Não haveria falar, por
conseguinte, em que a natural demora do processo autorizasse, diante da superveniente
entrada em vigor do novo Código, que regras eventualmente mais gravosas para a
parte alterassem aqueles elementos considerados por ela considerados quando da
escolha pelo ajuizamento da ação, pela resistência ou pela interposição do
recurso.
É dizer, a ponderação custo vs. benefício que
pauta a escolha da parte quanto à conduta a ser adotada no processo não pode
sofrer posterior alteração que poderia influenciar aquela escolha pelo simples
fato de que a escolha já foi exercida (7)
Com base no mesmo entendimento, as inovações
quanto à imposição de novos requisitos para concessão dos benefícios da Justiça
Gratuita (art. 790, §§3º e 4º) e da responsabilidade pelo pagamento dos
honorários periciais em caso de sucumbência do trabalhador (art. 790-B), conforme
previsão da Lei n. 13.467/2017, não deverão ser aplicadas aos processos já em
curso, uma vez que não se tratam de institutos exclusivamente processuais e a
alteração da legislação poderia influenciar nas conduta processual das partes
ou quanto à avaliação dos riscos da demanda.
Conclusão
Diante do exposto, considerando-se que a Lei nº
13.467/2017 ainda se encontra no período de vacatio legis, é preciso que seja
repensada a aplicação do direito intertemporal em matéria processual subjetiva,
com reflexos no patrimônio/situação jurídica das partes, afastando-se do
paradigma adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, com o reconhecimento de
que a legislação a ser aplicada nestes casos deve ser aquela vigente quando do
ajuizamento da ação e da apresentação da defesa, em respeito aos princípios do
devido processo legal e da segurança jurídica.
[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de
direito processual civil, vol. I. Brasil: Malheiros, 2001.
[2] DINAMARCO, Op.cit., p. 19.
[3] DINAMARCO, Op.cit., p. 47.
[4] STJ, Quarta Turma, REsp 1.465.535/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 22.08.2016.
[5] WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 73. v. 1.
[6] CALAMANDREI, Piero. O processo como jogo. Tradução Roberto Del Claro. Revista Gênesis, Curitiba, n. 23, p. 191-290, 2002, p. 192.
[7] NÓBREGA, Guilherme Pupo da. O STJ decidiu: a sentença é o marco temporal-processual para identificação das normas a regular os honorários. E aí?. Artigo capturado da página www.migalhas.com.br, em 16/07/2017, às 23h:13min.
[2] DINAMARCO, Op.cit., p. 19.
[3] DINAMARCO, Op.cit., p. 47.
[4] STJ, Quarta Turma, REsp 1.465.535/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 22.08.2016.
[5] WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 73. v. 1.
[6] CALAMANDREI, Piero. O processo como jogo. Tradução Roberto Del Claro. Revista Gênesis, Curitiba, n. 23, p. 191-290, 2002, p. 192.
[7] NÓBREGA, Guilherme Pupo da. O STJ decidiu: a sentença é o marco temporal-processual para identificação das normas a regular os honorários. E aí?. Artigo capturado da página www.migalhas.com.br, em 16/07/2017, às 23h:13min.
(*) Fabrício Lima Silva é Juiz do Trabalho
Substituto do TRT da 3ª Região. Professor de Cursos de Especialização. Bacharel
em Direito pela Universidade de São Paulo, com habilitação em Direito de
Empresa. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela
Uniderp. Especialista em Direito Público pela Anamages – Associação
Nacional dos Magistrados Estaduais.
Fonte: JOTA, por Fabrício Lima Silva (*),
20.07.2017
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