Reforma da Previdência: começou a guerra da desinformação
Pouco mais de uma semana
se passou desde que o governo divulgou sua proposta de reforma da
Previdência. Nesse tempo, tivemos o afastou-mas-ficou de Renan
Calheiros, a divulgação da primeira delação de um executivo da Odebrecht
e a aprovação definitiva da PEC do Teto. Foi muita coisa dividindo a
atenção com a reforma, mas mesmo assim os brasileiros foram capazes de
mostrar seu excelente senso de humor criando vários memes
divertidíssimos.
Além dos memes, viralizaram na internet textos e vídeos com opiniões
contrárias à reforma. Em geral, os argumentos que condenam as mudanças
na previdência podem ser agrupados em 4:
1. O déficit da Previdência é um mito; a Previdência é, na verdade, superavitária. Tecnicamente
até poderia estar correto, mas o argumento é inócuo. No limite,
contabilmente pode não haver mesmo o tal déficit: o governo sempre é
capaz de cobrar mais e mais impostos, imprimir moeda e/ou contrair mais
dívida para pagar aquilo que excede o que as pessoas contribuírem. Mas
não é esse o foco relevante. O problema real é que os brasileiros já
gastam 12% do PIB com aposentadorias, pensões e benefícios a idosos. É
de longe o maior gasto do governo. Nenhum país do mundo gasta tanto
quanto nós, se considerarmos o nível de envelhecimento da população. Ou
seja: o problema não é o déficit, mas o tamanho do gasto. Afinal, se
gastamos 12% do PIB com previdência, precisamos recolher esse volume em
tributos para pagar essa conta. Isto é, precisamos destinar um mês e
meio por ano de nossa produção apenas para pagar os benefícios do INSS e
dos funcionários públicos. Quem argumenta que os impostos atuais são
suficientes para pagar os benefícios parece não perceber que é
justamente o peso dos impostos atuais que é parte grande do problema.
Além disso, há o problema da trajetória dos gastos e da arrecadação.
Hoje, cada trabalhador do setor privado tem recolhida ao INSS uma
contribuição de cerca de 30% de seus salários. O INSS funciona no
chamado sistema de repartição. Nesse sistema, os trabalhadores ativos
contribuem para pagar os benefícios dos idosos, na expectativa de que
quando chegar a sua vez as próximas gerações de trabalhadores irão
continuar pagando. Não há, nesse arranjo, nenhuma preocupação com
equilíbrio atuarial. Para o sistema ser equilibrado, é necessário um
‘equilíbrio demográfico’: em números redondos, são necessários 3
trabalhadores contribuindo na ativa para viabilizar o pagamento de um
trabalhador parecido com eles que está aposentado (e que receberia
benefício igual a 90% do salário dos 3 que o sustentam). Mas, segundo o
IBGE, em 2015 tínhamos 2,58 brasileiros com idade entre 20 e 54 anos
para cada brasileiro com 55 anos ou mais. Pior, essa razão está caindo
rapidamente, já que há bastante tempo nasce menos gente e as pessoas
vivem mais (ainda bem!). Ou seja: o sistema se tornará, rapidamente,
cada vez mais desequilibrado.
A perspectiva de que o governo logo não terá recursos suficientes
para pagar essa conta faz com que investidores e empresários fiquem
receosos em investir, porque temem mais impostos. Ao mesmo tempo, os
juros sobem porque o risco de deixar dinheiro com o governo aumenta (já
que vai faltar lá na frente). Menos investimento (portanto menos emprego
e renda) e juros mais altos: problemas para a economia.
2. Mesmo que mudanças sejam necessárias para o futuro, a
reforma que o governo propôs é injusta porque só prejudica os mais
pobres. Não é verdade. A principal mudança da proposta é a
adoção de uma idade mínima de 65 anos. Hoje, há duas formas para se
aposentar (para os trabalhadores da iniciativa privada): ou por idade,
atingindo os mesmos 65 anos, ou por tempo de contribuição (que deve
somar 35 anos). Ocorre que apenas quem consegue ter um emprego formal
por bastante tempo é que consegue chegar aos 35 anos de contribuição
antes dos 65 anos de idade. Os mais pobres normalmente estão uma
condição mais precária no mercado de trabalho e ficam bastante tempo na
informalidade. Por isso, no sistema atual, acabam conseguindo algum
benefício previdenciário somente aos 65 anos. Ou seja, quem se aposenta
mais cedo hoje no Brasil é quem tem os melhores empregos e os melhores
salários, e são esses mesmos que serão mais atingidos pela reforma.
Há outras mudanças importantes também, mas não irei abordar tudo para
não deixar o texto longo demais. A reforma não é perfeita e poderia
melhorar em alguns pontos, mas está próxima do possível e,
principalmente, do necessário.
3. A idade mínima de 65 é um absurdo. Há
estados brasileiros onde a expectativa de vida é isso ou um ou dois anos
a mais. Quem é que tem condições de trabalhar até morrer? É justo isso? Outro
argumento com bastante apela, mas falacioso. Não faz sentido olhar para
a expectativa de vida ao nascer para definir uma idade ideal de
aposentadoria. Um sistema de aposentadoria público deve servir a quem
chega a uma idade na qual sua capacidade de produzir diminui e, assim,
não é capaz de conseguir um nível adequado de renda do trabalho.
Portanto, a expectativa de vida que importa é a expectativa de quem
passa dos 60 e poucos anos, quando normalmente a capacidade produtiva
diminui. Deve haver seguros para pessoas que sofrem acidentes ou morrem
antes de chegar à idade mínima, e isso já existe.
Uma curiosidade: o primeiro sistema de previdência do mundo foi
criado por Otto von Bismarck na Alemanha, em 1880. Lá, a idade mínima
para receber o benefício era de 70 anos.
4. O gasto da previdência é um gasto social, garantido pela
Constituição. É dever do Estado proteger esses cidadãos. A conta está
alta? Então que os ricos paguem mais impostos! O dinheiro que a
sociedade usa para pagar as aposentadorias, pensões e benefícios aos
idosos não cai do céu. Ele vem de impostos sobre a folha ou sobre o
faturamento das empresas, impostos esses que tornam a vida de todos mais
cara e mais complicada. Ou seja, o ganho líquido do sistema atual é,
sem dúvida, muito menor do que o valor nominal do benefício que cada
aposentado ou beneficiário recebe. Então, vale lembrar: quando a
sociedade quer que as pessoas consumam menos, por exemplo, cigarros, o
que fazemos? Colocamos um imposto no cigarro e com isso aumentamos seu
preço e inibimos seu consumo. Para financiar a previdência, a maior
parte da arrecadação vem de impostos sobre os salários. Ou seja:
diminuímos a quantidade de empregos em nossa economia para financiar a
previdência. Não podemos esquecer disso durante qualquer debate: não há
almoço grátis. E não é verdade que um imposto sobre herança ou grandes
fortunas resolveria o problema. Esses costuma ser a panaceia de muita
gente, mas a arrecadação potencial com eles é pequena perto do tamanho
do gasto que temos.
(Por sinal, acho que o governo perdeu uma grande chance de incluir na
reforma uma tributação maior sobre a herança; seria uma forma de tornar
o sistema tributário mais progressivo e dar um sinal à sociedade de que
os mais favorecidos também serão chamados para ajudar.)
Reforma da previdência é assunto seríssimo. É um problema grave que o
Brasil conhece há décadas, mas preferiu fingir que não existia durante
as vacas gordas nos anos de Lula e parte de Dilma. A reforma proposta
não é a ideal (faltou incluir militares, por exemplo) e, infelizmente,
está sendo feita em um ritmo muito acelerado.
A combinação desse ritmo com a preocupação de cada brasileiro com seu
próprio futuro gera muita insegurança, confusão e apreensão. Por isso,
os próximos meses serão de muita tensão. Já estamos em uma verdadeira
batalha de desinformação. Ganharão espaço argumentos sem lógica
econômica, mas com apelo emocional. Ao mesmo tempo, essa é mais uma
oportunidade para a sociedade brasileira se educar economicamente,
lembrando que não é o governo que paga pelas coisas, mas sim os
cidadãos. Somos nós que vamos pagar essa conta de um jeito ou de outro.
Se quisermos retomar o desenvolvimento, não temos outro caminho senão
reformar a previdência.
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