A ratazana com PhD 17/11/2014 - Fonte: Folha de S. Paulo Online
Imagine que você está numa reunião de colegiado de qualquer
universidade brasileira. Desafio você a contar quantas vezes ouvirá a
palavra "alunos" ao longo da reunião. Provavelmente, nenhuma ou quase
nenhuma. Refiro-me aqui especificamente ao universo do mestrado e do
doutorado.
Perguntará o leitor assustado: "Como assim? A universidade não foi
feita para os alunos??!!". Responderá o professor: "Coitadinho dele,
ingênuo. Não: a universidade existe para fazer relatórios burocráticos
que supostamente medem a qualidade da pós-graduação. Servimos a
burocracia da produtividade e só isso".
Se Kafka vivesse hoje, escreveria um conto no qual nós, acadêmicos,
seríamos representados como ratos aterrorizados pela grande ratazana
"empoderada" (essa palavra horrível que alguém inventou em alguma noite
em que vomitava continuamente...), rainha de todos os burocratas, seres
nascidos para tornar qualquer criatividade real inviável. A
originalidade é perseguida a pauladas nos corredores das universidades.
O aluno é a variável menor porque ele não "conta" ponto nenhum para a
Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior),
apenas como médias quantitativas que medem a rapidez com a qual
mestrados e doutorados são concluídos.
Se for uma universidade pública, então, em que o salário não depende
do número de orientandos e de alunos em sua disciplina, o aluno é menos
importante do que banheiros limpos. Se for numa privada, ele contará, é
claro, nos contratos dos professores como números que garantem
salários. E só.
E o aluno, como todo miserável numa cadeia alimentar em que é a
parte mais fraca, sonha virar predador: submete-se ao matadouro porque
quer passar em algum concurso. Mas, se quiser, trate de arranjar alguém
que manipule uma banca a seu favor. Além, claro, de atender às
exigências da ratazana rainha.
Todo professor sabe que deve correr atrás de pontuar nos relatórios
porque, inclusive, se não o fizer, derruba a nota do seu departamento, e
isso será punido das mais diversas formas. Você até pode dar uma aula
medíocre, repetindo conteúdos ou fazendo o aluno dar seminários no seu
lugar. Isso em nada impacta a "produtividade". A ratazana rainha só
enxerga números.
Mas ainda é possível pensar a educação a sério. Livros como o da
jornalista Amanda Ripley "As Crianças Mais Inteligentes do Mundo e como
Elas Chegaram Lá", do selo editorial Três Estrelas, do Grupo Folha,
mostra que, no ensino médio, nem sempre quantidades implicam qualidades
(vale muito a pena ler esse livro se você está interessado em superar
as bobagens de autoajuda e as tecnobobagens aplicadas à educação, na
moda aqui no Brasil). Ainda que o livro se ocupe do ensino médio, ele
pode servir de luz para o tema em geral.
Espero que um dia superemos esse paradigma vazio das "listas qualis"
que, na realidade, aferem nada, em termos de conteúdo, do que significa
a relação com a formação do aluno. Por quê? Simples: porque, mesmo que
publiquemos muito segundo parâmetros qualis', a qualidade do ensino de
pós-graduação no Brasil é cada vez mais burocrática.
O problema é que ficamos tão atolados com medo dos relatórios
contínuos (todas as plataformas X, Y e Z) que pouco importa o desejo de
conhecimento dos alunos. Sei: cometi um pecado romântico ao dizer isso. A
produção na universidade é industrial do tipo salsichas. Puro
capitalismo chinês. E capitalismo chinês é assim: TVs, carros baratos e
gente estúpida, correndo da ratazana devoradora de almas.
P.S.: na semana passada, como disse, suspeitava de que o nome da
entrevista de Freud sobre seu desinteresse acerca da vida após a morte
não fosse "A Transitoriedade" que é, na verdade, um texto dele mesmo
sobre a impermanência das coisas (que era o tema mesmo de que tratava a
coluna). Uma amiga psicanalista me mandou a referência precisa: "O valor da vida. Uma entrevista rara de Freud". Nessa entrevista, dada em 1926 ao jornalista George Sylvester Viereck, ele diz precisamente o seguinte: "Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto". Amém, digo eu.
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